terça-feira, 4 de novembro de 2014

rabiscos

Da série de contos Diários em terceira pessoa.
Uma tentativa de literatura. Por que nenhum deles é real. E nenhum deles é fictício.


Para ouvir enquanto lê: Take a Bow (Greg Laswell)

Sentou-se à cama, levemente pensativo, e ficou por um tempo admirando a pilha de rabiscos em cima da estante a sua frente. Alguns estacionados ali havia meses. Uns a lápis, outros a caneta, alguns mais organizados, outros rabiscados, tortos, com setas puxadas aqui e ali apontando as tentativas de costurar as ideias. Vez ou outra, desenhos perdidos com bonecos de palitinho, ou um trecho de música escrito entre aspas e com letra corrida no canto da folha, provavelmente algo que ele andara escutando ou tinha na cabeça na época em que cada uma daquelas palavras foi escrita – para ser deixada de lado, naquela pilha, logo em seguida.

Histórias, contos, crônicas, poesias... todos inacabados.
Todos materializando a insatisfação que lhe tomava ali, na cama, por estar tanto tempo sem conseguir terminar de escrever qualquer coisa, sem conseguir um texto decente, sem dar conta de colocar nas palavras qualquer parcela de sentimento que lhe tomara naqueles meses tão confusos...


E ele riu. Por um momento, se deu conta de que talvez a pilha de papel incomodasse por estar numa situação parecida com aquela em que a sua vida andava. Uma pilha de não-literaturas que lhe refletiam, assim como as tentativas de literatura que ele esboçava de vez em quando.

Uma metáfora das suas histórias: uma pilha de experiências inacabadas, avulsas, perdidas, algumas confusas, outras mal escritas, algumas mais limpas, outras cheias de setas e rabiscos tentando dar caminho ao que não se costurava. Um monte de pontas soltas, desamarradas. Alguns bons diálogos, bonitos de ler, outros doloridos e sem muito sentido. Alguns enredos ruins por terem começado quentes, rápidos demais – porque algumas histórias, se não forem microcontos, perdem o sentido se já começam no clímax.

Um monte de sentimento confuso, bom e incerto, deixado de lado em uma pilha de rabiscos que se acumularam, talvez com a esperança vã de um dia serem retomados, revistos, repensados, reescritos, levados a algum lugar.

Sentado na cama, pensou na sua ânsia por ser feliz, sua ânsia sem culpa, mas sem jeito também. Pensou na sua ânsia por colocar a felicidade – ou o drama – nas palavras, aquela ânsia também sem culpa, mas que pelo menos costumava ter um pouco mais de jeito. Agora, a pilha de papeis inacabados denunciava que talvez nem a escrita lhe quisesse mais muito próximo. Talvez uma coisa associada à outra, porque a sua escrita era sempre movida a amores... que desencantaram um pouco, outra vez, no meio das suas decepções e esperanças que sempre iam, voltavam, em fluxo...

Sentado na cama, pensou na inspiração dos abraços, dos encontros, das mãos dadas, dos clichês, dos banhos de chuva, dos filmes que foram assistidos inteiros e dos que foram interrompidos por beijos no meio da sessão de cinema... pensou nas trilhas sonoras, nos encontros, nas distâncias, nos ônibus tomados e nos perdidos de propósito, pensou nas visitas sem retorno, na roupa rasgada e na roupa esquecida... E era tudo tão cheio, e já tão vazio; tudo tão tomado por possibilidades, e tudo já tão deixado de lado; tudo tão bonito e já tão sem cor; tudo tão cheio de enredos, mas já sem caminho para nenhum. Tudo tão tomado de sentimento que uma hora o coração parou, sufocado. Bateu rápido demais, desesperado demais, porque ansiava, e nunca aprendia.

Levantou-se da cama, pegou os rabiscos, abriu a lixeira e pensou em jogá-los todos fora. Pensou em parar com as histórias e deixar para escrevê-las só depois que elas tivessem algum caminho. Mas era sentimental, apegado a memórias. E pensou que só essa expectativa por um caminho já era novamente ser tomado pela tentação de construir um enredo que poderia não dar em lugar nenhum. Se viu sem saída. Pensou em aceitar as histórias e publicá-las, inacabadas como estivessem, porque era assim que elas eram. Mas alguma coisa o fez desistir, talvez alguma vaidade, de não querer ver público aquilo que lhe desarmava – como amante, ou como escritor.

Largou novamente os rabiscos na estante, e como que num desafio, pegou o lápis e um papel em branco para despejar nele a sua confusão.
E ao menos se deu conta de que era tudo assim, uma confusão.
Essa coisa que volta e meia vinha lhe definir.

Riu novamente. E sorriu.

Antes que pudesse escrever qualquer coisa na folha nova, voltou aos rabiscos já com um quê de carinho, e levou-os àquela pasta quase esquecida na última prateleira da estante, onde ele guardava os textos antigos que sempre revisitava quando queria entender um pouco mais de si. Porque as histórias inacabadas, se não rendessem literatura, agora rendiam, pelo menos, aquelas epifanias que ele costumava ter sempre – às vezes com algumas respostas... mas sempre com novas questões.

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